Aqui sossegadita no sofá, com a medicação tomada, manta nas pernas, cabeça cansada. Pijama e roupão polar. Tom e Jerry antes de ir para a cama. Cabelo solto. O sono a espreita. E em mim ainda ressoam as palavras do chefe, que fez de mim sub-sub-sub-chefe. A minha sorte é conseguir rir de mim mesma e quando me vejo equipada para trabalhar não me reconheço. Não tenho ambição de poder. Não me sinto poderosa. Não me sinto mais que ninguém. Só que lá consigo ser correta e (...)
Nunca discutimos. Sou sempre eu a falar sozinha, com olhar vazio. Nunca falas, nunca respondes. É um monólogo constante, como se estivesse a desabafar de mim para mim e não a tentar dizer ao homem que ainda amo o que não está bem. Mas nunca tenho contraponto. E a solução é uma solidão que se vai metendo de fininho cá em casa. É o som do vazio cada vez mais notório. Encostas a cabeça, tentas fazer mimo a ver se paro, se me passa. Não passa, é por sal na ferida. É quereres (...)
Mais um ano que começa. Mais uma oportunidade de recomeçar e não deixar o tédio tomar conta de nós. Ou a rotina. Ou o raio do nevoeiro que insiste em não ir embora. Ou não ter desculpas para não ter um nisquinho de ambição, nem que seja ambicionar um dia sem dores nos joelhos. Um incentivo a fugir do marasmo. Da mesmice. De usar a imaginação para seguir a rotina de sempre com outras nuances. Não viver roboticamente. Largar o piloto automático e perder o medo. Ano novo, vida (...)
Penúltimo dia deste ano tão desafiante. O aparecimento da depressão, todo o processo de aceitação tanto da doença como da medicação, os acertos e as falhas, as tentativas de suicídio, a incompreensão a minha volta... mudei de casa, para uma casa vazia que neste momento tem vida e cor. Mudei de emprego, o meu verdadeiro salto de fé. O momento de coragem do ano. Burnout. Esgotamento. Desaparecimento do olhar público. Ter tempo para me curar foi fundamental. Voltar ao trabalho, (...)
É muito mais do que escrutinar a nossa vida. É perceber a influência do passado no presente. É curar as feridas. É não ter medo de nos conhecermos a fundo, reconhecer as qualidades e assumir o lado sombrio. Esquecer a busca da perfeição. Assumir a própria personalidade, sem tretas. E isso é tão libertador...
Trabalho na agricultura. Não tenho licenciatura em nada,conclui o secundário com uma média simpática. Gostava de ter sido jornalista. Achava que tinha jeito para a escrita, só mais tarde percebi que não sabia (e não sei) contar histórias. Perdi as esperanças de viver dos meus sonhos. Agarrei-me ao que havia, trabalho no campo, e por lá continuo. Tenho um colega que é aluno de mestrado. Fez o caminho ao contrário. Foi parar ao campo para ajudar ao orçamento. Diz que a vida (...)
Era uma vez a base de uma casa. Sobre essa base cresceram paredes, divisões. Pintou-se a fachada e a varanda ganhou gradeado. A sala ganhou uma mesa grande onde cabia toda a gente. Havia um filho único, mimado por toda a gente. Havia gente que nunca mais entrou naquela casa. Os avós eram mais novos. Havia sorrisos. Um único casamento. Havia um ambiente bom. E eu vi isto tudo em fotografias tiradas antes da minha existência. O olhar matreiro do meu irmão que a filha herdou. A mesma (...)
Não estou a conseguir entrar no espírito natalício. A vida vai torta, está tudo caro. Até o barato está caro. Não há tempo para quase nada. O trabalho tornou-se exigente e absorvente. Sinto-me cansada. Sinto-me triste. Não é altura para isso, devia andar feliz a saltitar entre lojas a escolher presentes e a ver as iluminações por aí... Até porque vai ser a primeira vez em muitos anos que vou estar a trabalhar na véspera e no pós dia de Natal. E isso é deprimente. Muito (...)
Já tenho material para escrever uma série de espionagem. A complexidade dos vários caracteres é interessante, mas cansativa. Um olhar, uma palavra inocente pode mandar uma reputação abaixo. Ou revelar particularidades de feitio. Ou fazer a pessoa tirar as garras. Psicologia aplicada à viticultura. Santa psicóloga que me desfaz estes nós e me faz ver as coisas doutro ângulo. É difícil medir as palavras, ser irrepreensível. É difícil não poder confiar. Mas, no fim de contas (...)
Do muito que podia ter para dizer, ia ficar sempre uma tristeza dissimulada, escondida em palavreado mais cinzento, menos solar, mais opaco. Do muito do que digo no dia a dia tenho medo de ser mal interpretada, mal falada nas costas, que dêem um segundo sentido ao que não tem.As pessoas retorcem as palavras, tiram-lhes a emoção e dão-lhe a frieza de uma informação, o excitex de um mexerico,a maldade de saber que aquele comentário, mais tarde ou mais cedo vai ferir a pessoa. As (...)